terça-feira, 27 de março de 2012

Se acredito em deus?

Esta pode não ser a única coisa que as pessoas costumam responder sem pensar, mas certamente é a mais frequente.


Sério. Já pararam para pensar no significado que há por detrás da palavra “deus”?


“Ah!, mas é uma questão puramente de fé...” Não, não é. Ao menos não puramente.


Cientistas e religiosos – incluindo cientistas religiosos e religiosos cientistas (que não necessariamente são a mesma coisa, o que não discutirei aqui, agora) –, trabalham apegados ao conceito de causa-consequência, obedecendo à lógica.


O problema é que, se toda consequência tem uma ou mais causas – ou seja, cada consequência funciona como causa para a consequência seguinte –, não é possível estabelecer a causa original. A pergunta “quem deu causa à primeira causa?” é, na verdade, a velha conhecida “de onde viemos?”, passada ao campo filosófico.


É inegável que há, aqui, uma ruptura na lógica, o que gera um enorme vazio de conhecimento, que jamais poderá ser preenchido (se você acha sabe a resposta, ou é o maior gênio da história da humanidade, ou tem um sério problema de megalomania).

E é exatamente neste vácuo que entra, inevitavelmente, a fé (em seu sentido mais amplo, de “acreditar”).

Acreditar no big bang ou em uma criação sobrenatural não é lá assim tão diferente. O mesmo se pode dizer de qualquer outra teoria que se preste a tentar explicar o existir.


Afinal, de onde veio tudo?

Deus (ou o universo) criou-se a si próprio?


A ideia é antiga, e o que mais interessa são as consequências.

Pensemos:


Para que se chegue à “origem original” (sendo ela, por exemplo, deus), será preciso dizer que, antes dela, nada existia.

E, se nada existia antes, deus não pode ter sido consequência de uma causa. O que significa que, ao invés de ser, como acontece com tudo, o resultado de uma ou mais causas antecedentes – num encadeamento lógico e infinito de uma consequência sendo causa da consequência seguinte, mais adiantada no plano lógico-espacial-temporal –, ele precisa ser causa de si (ou causa sui, como costumam dizer teólogos e filósofos).


Eis exatamente o primeiro ponto de distanciamento entre mim e eles.

Defender que algo possa criar-se a si próprio já é solução dada fora da lógica.

E, se é para trabalhar fora da lógica, acho mais razoável crer (sim, eis a fé) que tudo sempre tenha existido. Acredito, portanto, que uma causa primeira não necessariamente deve ter existido. É questão de acreditar; fazer o quê?


Mas sigamos com a teoria da causa sui (sobre a qual também não se pode fazer prova, seja ela positiva ou negativa):

Ser a causa de si é fenômeno que só pode ocorrer uma vez. Sendo a origem de tudo – inclusive dela própria –, é evidente que não pode haver duas.

Explico (ou ao menos tento): de uma única causa, derivam inúmeras consequências, que, somadas, formam o todo que concretiza, como num instantâneo, cada medida mínima do tempo-espaço.

Ou seja: de cada uma das causas, irradia um feixe que, em conjunto com outros feixes derivados de outras causas, forma o que está acontecendo exatamente a...qui-e-agora!... e a...qui-e-a...gora!... e a...qui-e-gora! E em todos os milésimos de milésimos de milésimos de segundo em cada um dos milésimos de milésimos de milésimos de milímetros do tudo, desde a sua origem, até o seu fim.


Imaginem, então, um feixe de luz saído de uma lanterna. Se a luz não se dissipasse com a distância, esse feixe se abriria tanto que, num limite de tempo infinito, seu espaço também seria infinito.

É o que acontece com qualquer causa. Tomando como exemplo uma conduta humana, peguemos um tapa. Este simples ato produzirá consequências infindáveis: a transferência de energia da mão para o rosto, por exemplo, iniciará (se vista como ato isolado) ou continuará (se vista a partir da causa de si); um fluxo cujos desdobramentos não terão fim.


O raciocínio contrário é idêntico.

Se fosse tirado um instantâneo do universo neste exato instante, todas as suas causas teriam que regredir a um ponto único. À lanterna. À origem. À causa de si.


E, se tudo tem origem na causa de si, esta obviamente tem que ser única.

Se houvesse duas, seríamos obrigados a admitir que há algo além do tudo.


Até aí, ok. Dentro da lógica proposta, não vejo erros, muito embora a teoria não possa ser provada.


Mas aonde chegamos, com toda esse raciocínio?


Chamar a causa de si de deus é o que quase todos fazem, ainda que inconscientemente. É o que farei, também (muito embora pudesse inventar uma palavra – xscrãbols, por exemplo –, para diferenciar do conceito cultural de deus; mas chego lá).


Os que defendem deus como causa sui chegam a afirmar que deus não pode não existir.

Isto porque, retirada a primeira causa, nenhuma consequência haveria, e, portanto, nenhuma “causa consequente”.


Creio que isto é o mais próximo que se pode chegar de um conceito de divino – e ele me parece plausível, com a única ressalva de fé feita acima.


Mas a afirmação quanto à existência de deus deveria parar por aqui, já que as demais pinceladas em sua “figura” violam o próprio raciocínio lógico que nos trouxe até este ponto.


Reflita-se, por exemplo, sobre a singela possibilidade de existir uma vontade de deus.

Sendo causa de si próprio, poderia ele não ter se criado? Não.

Por quê? Porque se não houvesse se criado, não haveria sequer a possibilidade de ter optado ou

não pela sua criação. Para ter vontade, é necessário, antes, ser.

O mesmo se pode dizer quanto à consciência. Saber-se pressupõe ser.


Isso prova que a causa de si não pode envolver nem vontade, nem consciência.

Criar-se a si nada mais seria do que causa necessária, sem a qual sequer se poderia cogitar qualquer coisa.


O que leva a concluir que deus seria, além de causa de si, também consequência de si (ele dá causa a si próprio, mas é ainda a própria consequência dessa causa). Não como dois lados de uma moeda, mas como algo só, uno.


Como causas e consequências atrelam-se num encadeamento infinito, é evidente que deus, como consequência de si, seria necessariamente também causa de tudo o mais que não ele próprio.

Em outras palavras, nada poderia existir se já não estivesse contido em si.

Além disto, por ser causa de tudo,causa e consequência de si, teria que obrigatoriamente conter aquilo de que decorra tudo o que existe.


Não há, assim, a mínima margem de opção – se assim pode ser compreendida a “vontade”.


Ou seja: pode ter existido um deus causa de si próprio, mas não pode existir um deus com vontade, que aja ou alguma vez tenha agido a favor ou contra quem ou qualquer coisa. Isto, sim, viola totalmente a lógica.


É claro que sempre poderá surgir alguém com o “fator x-men”, aquela surpresa que aparece "movendo" (com aspas de ironia) montanhas com a habilidade de um prestidigitador: “Ei!, mutante Cotonéton, saia daí de trás dessa pilastra onde você se escondeu nos últimos bilhões de anos, e venha aqui transformar esta porta intransponível em algodão”.

Como exemplo disto, já até posso escutar alguém argumentando com um: “deus-é-pai, e, se inculcou a lógica nos seres humanos, foi porque quis vê-los negando sua possibilidade de criar a si pela própria vontade, para depois deixá-los queimar no inferno. Está tudo na bíblia. É só ler”.


Na boa: se é isto que você pretende dizer, faça um favor a si próprio: guarde bem guardada a sua opinião.


Deus os abençoe. Se puder.

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