segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Naftalina I

Sabem? Às vezes, tenho aquela vontade adolescente de subverter a ordem.
Então hoje farei algo diferente: não deixarei em suspenso a explicação do título; começaremos por ele.

A crônica é tão radicada no tempo, que a própria palavra é derivada de Cronos.
E nada melhor para simbolizar a parte mais saborosa do tempo – o passado – do que aquele cheirinho de camisa tirada do fundo do armário. Aquele mesmo que invade o ar toda vez que o Fluminense consegue mais uma escapada rara e milagrosa do rebaixamento: a naftalina.

Pronto! A inversão foi proposital.

Dada a explicação quanto ao título, ninguém mais está obrigado a ler o texto até o final.
Quero que fiquem só os amigos mais chegados. Afinal, estamos todos a meio salto de um mergulho profundo na minh’alma.

Digo – e se alguém discordar, que cale, a bem da argumentação – que são poucos os que têm a oportunidade de passar tão perto de um “quase futuro” como eu.

E o “quase futuro” significa mais que uma probabilidade.
Era uma certeza, que só não chegou a acontecer porque consegui intervir no tempo certo de salvar minha pobre existência daquele porvir garantido e sem surpresas, daquela vida toda modulada dali até o fim.

Aconteceu na última quinta-feira.
Coisa rápida: os segundos exatos de um pouso na curta pista do Santos Dumont.
Mas lá estava ela, muros caiados ajudando a esconder o que eu varri há muito pra debaixo do meu tapete: a Escola Naval.

Hoje, a resposta me vem fácil, mas naquele tempo de dúvida e disciplina severas, as perguntas torturavam. E muito!
O que tinha eu a fazer em meio a toques de corneta de madrugada, rações mal ajambradas de comida e absoluta ausência de companhias com saias (e com tudo que há além delas)?

Acreditem quando digo que foram anos difíceis.

Só com muito esforço consigo lembrar do que na época sentia, alijado súbita e precocemente de uma infância mal acabada (ou de uma adolescência mal começada, como prefiram).

Tempos que serviram para me ajudar a descobrir que tratar garotos como homens não os torna homens.
Ao contrário: torna-os garotos arrogantes a ponto de tentar fazer de outros, tão garotos como eles, algo cujo significado – e consequências – eles nem sequer imaginam.
E não é nada difícil encontrar garotos de vinte, trinta, quarenta, cinquenta anos, brincando de educadores.
Conheci poucos, pouquíssimos, dentro do Colégio Naval que tivessem uma noção minimamente digna e coerente do que é a hombridade.
E tomei-os como o exemplo claro de que a influência do meio sobre nós é sempre temperada pelo caráter.

Ainda assim, repito: não há nada, absolutamente nada, que me faça ressentir tudo que se passou. E no “nada” incluo as formações infindáveis, as humilhações (muito) mal disfarçadas de brincadeiras, o descuido criminoso com a saúde, a irresponsabilidade no ensino e todo tipo de tortura psicológica que salpicava o abominável dia a dia na caserna.

Não minto ao dizer que, por mais que me esforce – e reconheço que a afirmação parecerá contraditória –, não consigo espanar a capa de nostalgia que cobre essa parte do meu passado.
Sobre tudo (e sobretudo), fica sempre a única herança positiva daquela vida de privações: as amizades.
Juro que nunca mais encontrei aquela cumplicidade, tipo de coisa que só existe quando uns poucos guerreiros sustentam, cada um na medida de sua força, o peso do mundo.
Nada de classis spes. “Nós poucos contra a corporação” era o absurdo lema oculto que nos fazia ao menos caminhar até a tão sonhada sexta-feira; ela que trazia – na maioria das vezes, a depender da escala de serviço – os dois santos dias de alforria com hora pra acabar.

Certa vez ouvi alguém comentar que o “Colégio Naval seleciona os melhores”. É a típica frase de um típico medíocre vestido de barretes, nós e estrelas.

Mas prestemos continência à incoerência.
Isso basta para satisfazer os egos inflamados e fardados.

3 comentários:

  1. Manja Lord of the flies? Então. Lembrou.

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  2. Quanto mais longos mais gostosos de ler! Eita... Adorei o mergulho.

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  3. Aldir,
    Só não tinha a cabeça de porco. O resto era beeeeem parecido!

    Carol,
    Você diz isso pra todos! rs

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