terça-feira, 26 de outubro de 2010

As rotações

Lembro-me de quando aconteceu.

Meu pai chegou em casa com aquele trambolho que, com mais ou menos cem metros de fios, deveria conectar-se à parafernália de som (de última geração, na época).
Junto com ele, dois disquinhos reluzentes de um brilho estranho, arco-irizado.

Isso foi há o quê? Quinze anos?
Mas é engraçado como ainda os tenho na memória: um do Caetano, um da Maria Creuza.

Eram tão diferentes daquelas bolachonas pretas que dava até medo de tocar. Deram-me as instruções: pegar pelas beiradas, apertar a caixa no meio, eject, põe o disco, eject de novo, play, e voilá: estava feita a mágica.

Não gostou da outra música? Clique, e já estava lá, de novo na sua preferida.

Mas não é bem sobre o meu primeiro dos muitos contatos de quarto grau com esses alienígenas que eu queria falar.
Não. A ideia é dividir uma conclusão (angústia?) a que cheguei faz um tempinho.

Sou de uma geração – e com uma boa probabilidade, vocês também – que vivenciou um grande salto na teconologia: do LP aos nano-MP18 (opa!, já lançaram um MP19).

E não nos enganemos: isso envolve também, necessariamente, uma mudança de postura.
Somos a causa-consequência dela. Orgulhamo-nos da revolução, mas geralmente preferimos empurrar a segunda para baixo do tapete.

Ora, antigamente, tínhamos só duas opções para satisfazer nossa sede musical.

A primeira é uma das reminiscências mais prazerosas da minha infância (e prepare-se, porque se é da sua também, você se sentirá tão velho quanto eu).
Lembro que eu passava o dia todo com o rádio ligado, dedo no botãozinho vermelho, esperando o momento em que tocariam AQUELA música. Milésimos de segundos preciosos diferençavam um medíocre de um popstar nas festinhas do condomínio.
Pouco importa que a gravação viesse entremeada de infindáveis samplers com o nome da rádio, anúncios, chiados. Aquele que tinha em mãos as músicas completas podia escolher o seleto rol de amigos a quem permitiria copiá-las. E, provavelmente, também a menininha com quem trocaria beijos rituais e burocráticos em algum lugar um pouco mais escuro do playground ou da rua.

Havia também, é claro, a possibilidade de se comprar os discos.
E aparecer com um “Rap Brasil” embaixo do braço tinha mais ou menos o mesmo efeito que hoje tem uma chegada num carro importado: os meninos o tachariam logo de gordo brocha, e as meninas, de “interessante”.

Enfim, de um jeito ou de outro, era muito mais difícil ter acesso aos hits.
Deixando de lado a primeira possibilidade, ainda assim restaria aos mais afortunados apenas um jeito de ouvir a mesma música várias vezes na sequência: levantar a bunda da cadeira e, depois de contar, linha a linha, apontar novamente a agulha para a listra exata.
Convenhamos: depois de fazer isso dez vezes, ou os vizinhos chamavam a polícia ou a pessoa se estatelava no sofá, e terminava de ouvir o disco.

Hoje é tudo muito mais fácil, e não é só por causa da abençoada invenção do controle remoto.
No fim das contas, a gente acaba ouvindo só as músicas que quer (quando, claro, não é vítima dos desagradabilíssimos difusores do mau gosto, que provavelmente em conchavo com o Coisarruim insistem em nos atazanar com seus carros e celulares).

E aí até dá pra entender essa extratemporalidade excessiva do gosto bizarro das crianças e adolescentes de hoje em dia.

Se eu tivesse um i-qualquercoisa na época, possivelmente passaria o tempo todo ouvindo Xous da Xuxa e outras bizarrices mais - o que equivale mais ou menos aos Luans Santana de hoje em dia.

E o mais importante: com certeza, não teria tomado gosto por todos os rostos que, na capa, escondiam daquele petiz as boas músicas das minhas sagradas e salvadoras bolachas.

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Cadê a câmera?

Que o romantismo há muito já foi pro beleléu, todo mundo já sabe.

Mas acho que pouca gente notou que estamos chegando num ponto crítico, numa esquina dos tempos... É chegado o momento em que a noção do ridículo nos flertes será, de uma vez por todas, declarada extinta.

Eu sei que você já deve estar aí, na sua, rindo.
Se você é mulher, aposto que lembrou de mais de dez cantadas daquelas que fazem pensar “Porra! Como você é mongolóide...”

Mas eu preciso dividir alguns fatos que presenciei num passado recente.
Por favor, leiam, ainda que seja só por educação.

Outro dia, por exemplo, ouvi um indivíduo lançar a seguinte pérola: “Ei! Você é de escorpião, né?”, seguida de um “É que meu signo combina mais com peixes”.

Vendo que o papo não vingava, resolveu utilizar alguma das técnicas que aprendeu num livro do tipo: “Como puxar assunto com garotas (se você realmente gostar de garotas)”.
Revisou mentalmente, e puxou a regra número um: mostrar-se interessado pela vida dela.
Com toda a sua criatividade, o máximo que conseguiu perguntar foi: “Você gosta de ser ruiva?”

Tsc, tsc, tsc...
Melhor sorte da próxima vez, valente guerreiro.

É de dar pena? Sim, não há dúvidas.

Mas aposto que se o paspalhão aí de cima tivesse visto o que eu vi na última quinta, sairia por aí com uma flor na boca e uma máscara de Don Juan.

Showzinho tranquilo, tudo em paz.

Um sujeito para ao lado da menina, olha, analisa, sorri, e lança todo o seu veneno num bote ofídico: “ié-ié”.
Assustada, a menina vira os olhos suplicantes para as amigas, implorando ajuda.
Pobre garota... É tarde demais.
As amigas, a ponto de perderem o ar de tanto rir, obviamente não têm forças pra barrar a cena. Pra falar a verdade, nem querem; o ser humanos às vezes é mau.
Quando ela olha para a frente novamente, toma um susto: o sujeito já ali, cara a cara, dando golpes de Serginho Malandro aos berros de “ié-ié, ié-ié”.

Como que implorando por um tiro de misericórdia, ela pergunta:
- O que você quer?
- Um beijo, ié-ié!

Corre o boato de que ela agora não sai mais de casa.
Desiludiu-se com a humanidade.

Andiamo!

Ela não era perfeita, mas ele sabia que era muito mais do que poderia esperar.
Bonita a ponto de fazer cabeças virarem, independente, inteligente. E o mais impressionante: ou ela fingia muito bem, ou então realmente interessava-se por aquelas suas infinitas dissertações sobre os assuntos mais chatos do mundo.

Por mais de uma vez ela chegou a repreender os amigos dele. Onde já se viu? Desde quando uma discussão sobre as influências de Godard sobre o cinema pós-contemporâneo egípcio era motivo pra riso?

Ele estava feliz, enfim.
Não tinha motivos para reclamar.

E o festival veio bem a calhar: desde que começara a estudar italiano, ele tinha passado a se interessar por aqueles filmes.
Era uma boa chance de impressioná-la. “Fazer a tchutchuca ficar pirada no papai aqui”, como constumava dizer.

Discorreu longamente. De Rossellini a Fellini, passando por de Sica.
Falou tão bonito, que ela até entrou animada (ou fingiu muito bem) na sessão.
E gostou mesmo do filme.

No final, com as letras ainda correndo, e depois de uns rápidos amassos, ele achou que havia chegado o momento de fechar com chave de ouro.
Forçando ao máximo um sotaque siciliano, sacou aquela frase que tanto havia ensaiado: “Andiamo!”

Não sei se foi por causa do barulho ou da emoção, mas ela acabou escutando um equivocado “te amo”.

Nunca mais saíram juntos.

terça-feira, 19 de outubro de 2010

Naftalina III

O que poderia ser diferente?
Tudo? Não, acho que há uma parte de todos nós que não mudaria, independentemente de qualquer decisão ou circunstância.
Quase tudo poderia ser de outro jeito, então.

Remexi nos armários da minha antiga casa.

Se eu fosse brega, lembraria de alguma música, e diria que joguei tanta coisa fora e vi meu passado passar por mim.
Não sou. Não esperem isso de mim. Recuso-me!

Mas no meio de tanto passado, encontrei mesmo muita coisa que me fez lembrar de tantas outras. Símbolos empoeirados de acontecimentos dos mais variados tamanhos, dos mínimos aos enormes.
Como cheguei a tornar-me eu?

Ri muito. Ri tanto... Ri mesmo do que antes me fizera chorar.

Não dá pra dizer que senti saudade. Em nenhum momento quis voltar no tempo.
(Acho que ele finalmente começa a me dar aulas sobre os infinitos modos de sentir.)

É só um prazer preguiçoso de contemplar esse alguém que fui, e que às vezes nem parece tanto assim comigo.

Se eu pudesse, guardaria tudo aquilo dentro de mim, e levaria pra onde quer que fosse.
Não posso...

Não levo comigo os papéis, mas carrego aquelas amizades, aqueles bons momentos, aquela felicidade tão louca que não dá nem pra descrever.

O que é isso? Não sei.
Mas é bom, muito bom.

E cheira à naftalina.

Naftalina II

Antes, porém, sobrevoei um passado mais recente, e também mais feliz.
Duas pontas daquela minha vida, separadas por uma baía de distância.

Como opção ao trânsito caótico da Ponte Rio-Niterói, as barcas, aqueles monstros, projetos de sucata que insistem até hoje em zanzar, devagarzinho, de um lado a outro.

E de um lado a outro meu corpo zanzava também, refém de uma vontade vacilante, ou ao menos não tão forte a ponto de se impor.

Quantas vezes saí correndo do trabalho e, catando o bilhete na carteira e esbarrando com a mochila em passageiros incautos, pulei a bordo no último instante, no tempo certo e medido de afrouxar a gravata ao som do silvo de partida.
Dali em diante, uma paz de vinte minutos com a cidade maravilhosa, luzes acesas, como pano de fundo.

Nem sei como aqueles bancos de madeira – tão frágeis, à primeira vista – sustentaram o tanto que refleti sobre a minha vida, e o peso das decisões, algumas das mais importantes. Sou capaz de lembrar de mais de uma dezena das que tomei ali, olhando para o rastro branco deixado à ré, ao som das ondas batendo no casco.

Não guardo todas na memória (e nem seria capaz), mas isso de forma alguma me nega o direito de ainda sentir o gosto doce a contrastar com o salgado do mar.

Penso no quanto eu seria diferente, não fossem tantos os bons conselhos.

Cruel destino: foi ali que decidi meu caminho. Este mesmo, que hoje passa por aqui, longe, muito longe dela.

Aldir, acho que só você me entenderá...