terça-feira, 10 de agosto de 2010

Re: A bruxa

A vida é curta demais.
Temos tempo suficiente apenas para fazer um pequeno punhado de amizades... Com sorte, meia dúzia. Com menos chance que de vencer na loteria, uma dúzia inteira.

Não falo dessas companhias de bar, nem dessas de papos intelectualóides.
Não. Dessas, há uma porção por aí; em qualquer bar, em qualquer escola.

São poucos, ou quase nenhum, os que nos inspiram uma admiração sincera.
Os que nos fazem considerá-los “um ponto acima da curva” da normalidade...

Pessoas "dessas caladas, distantes, que lêem verso de Horácio mas secretamente influem na vida, no amor, na carne”.

Amigos têm mais que interesses pontuais; têm a mesma filosofia - a do dia a dia, não a dos livros.
Podem manejar uma conversa dando guinadas radicais entre (muitas) estórias e (mais ainda) vontades, passado e futuro, literatura e mulheres. E tudo isso num piscar de olhos. Ou no espaço de um gole.

É sempre bom ter alguém com quem compartilhar, sem qualquer vergonha, a falta de limites do imaginar e do viver.
O que é o longe quando essas dimensões já passaram por cidade, estado, país e continente?

De qualquer jeito, é sempre bom voltar às origens e, numa daquelas boas conversas de antigamente, beber novamente dessa fonte (ou de uma tulipa).

E ainda falta o mundo!


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De: Aldir Piscina aldircachinhosdourados@gmail.com
Para: Hector Melendez
Enviadas: Sábado, 7 de Agosto de 2010 16:17:25
Assunto: A bruxa

Talvez desperte seu interesse...

A bruxa
A Emil Farhat

Nesta cidade do Rio,
de dois milhões de habitantes,
estou sozinho no quarto,
estou sozinho na América.
Estarei mesmo sozinho?
Ainda há pouco um ruído
anunciou vida ao meu lado.
Certo não é vida humana,
mas é vida. E sinto a bruxa
presa na zona de luz.
De dois milhões de habitantes!
E nem precisava tanto...
Precisava de um amigo,
desses calados, distantes,
que lêem verso de Horácio
mas secretamente influem
na vida, no amor, na carne.
Estou só, não tenho amigo,
e a essa hora tardia
como procurar amigo?
E nem precisava tanto.
Precisava de mulher
que entrasse neste minuto,
recebesse este carinho,
salvasse do aniquilamento
um minuto e um carinho loucos
que tenho para oferecer.
Em dois milhões de habitantes,
quantas mulheres prováveis
interrogam-se no espelho
medindo o tempo perdido
até que venha a manhã
trazer leite, jornal e clama.
Porém a essa hora vazia
como descobrir mulher?
Esta cidade do Rio!
Tenho tanta palavra meiga,
conheço vozes de bichos,
sei os beijos mais violentos,
viajei, briguei, aprendi.
Estou cercado de olhos,
de mãos, afetos, procuras.
Mas se tento comunicar-me
o que há é apenas a noite
e uma espantosa solidão.
Companheiros, escutai-me!
Essa presença agitada
querendo romper a noite
não é simplesmente a bruxa.
É antes a confidência
exalando-se de um homem.

Carlos Drummond de Andrade

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